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O Rapaz e a Garça - Modos de fazer mundos




O filme “O Rapaz e a Garça”, uma obra do cineasta Hayao Miyazaki, que venceu recentemente o globo de ouro na categoria de “Melhor Filme de Animação”, é uma fantasia altamente melancólica, triste, intrigante e, em simultâneo, sublime, pungente e deslumbrante.


De acordo com crónica de Luís Miranda (28.12.2023), o filme “reflete sobre a necessidade de resolução pessoal, a passagem das idades, a religação familiar, a perenidade da memória, as relações construtivas da individualidade e a temporalização enquanto forma de junção de posturas e experiências de crescimento pessoal.” (https://www.cinema7arte.com/o-rapaz-e-a-garca-entre-mundos-de-amor-e-lembranca/).


Logo nos primeiros minutos, o filme começa de forma desconcertante, com um episódio trágico, em que é impossível não deixar de imaginar (e até sentir) a dor que uma criança iria carregar para a vida.


Dos horrores da guerra, ao trauma de infância de uma criança em que a mãe morre num incêndio, à procura incessante de um rapaz de compreender-se a si e à família, até ao encontro de novos mundos interiores e exteriores. Surge, ainda, uma garça, símbolo de elegância e distinção, que se transforma numa criatura estranha e misteriosa e faz a ponte entre mundos.


A beleza de novos mundos grandiosos, os estranhos personagens e imagens inesquecíveis, muitas vezes tornam imperceptível o cruel realismo e a tragédia do filme. No final, a luz entra, o crescimento foi alcançado, a dor apaziguada e a esperança é o motor do futuro.


A construção de mundos entre o imaginário e o real pode promover processos psicológicos muito impactantes no desenvolvimento pessoal e o cinema pode ser um forte recurso na mudança psicológica-desenvolvimental, nomeadamente, quando desperta uma dimensão mais ampla do sonho, força motriz de transcender barreiras, obstáculos sociopolíticos, discernimento vocacional, levando à ativação de mecanismos psicológicos de identificação, compensação e insight.


Salienta-se a forma como os filmes podem misturar o sonho com a realidade, objetividade com subjetividade e, desta forma, permitirem diferentes reconstruções e modos de fazer mundos (Goodman, 1978).


Para Morin, “subjetividade e objetividade não só se sobrepõem, como incessantemente renascem uma da outra numa roda incessante de subjetividade objetivante e objetividade subjetivantes. O real é banhado, cotejado, atravessado pelo irreal. O irreal é moldado, determinado, interiorizado pelo real” (p.143).


Žižek (2013) reforça: “a consumação última da arte cinematográfica não é recriar a realidade dentro da ficção cinematográfica, seduzir-nos a tomar (erradamente) a ficção pela realidade, mas pelo contrário, fazer-nos reconhecer o aspecto ficcional da própria realidade como uma ficção” (p.15).


 

Goodman, N. (1978). Ways of Worldmaking. Indianapolis: Hackett Publishing Company.

Morin, E. (1980). O Cinema ou o Homem Imaginário (2ª Ed.). Lisboa: Moraes Editores

Žižek, S. (2013). Lacrimae Rerum- Ensaios sobre Kieslowski, Hitchcock, Tarkovski e Lynch. Lisboa: Orfeu Negro.

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